Capitalismo angolano
A guerra acabou, o marxismo também. Uma nova ordem se apresenta no caótico mercado de nome brasileiro. Mas não por muito tempo."Se não tem no Roque, é porque ainda não foi inventado." A afirmação do escritor angolano Pepetela é categórica e permeada de admiração e intimidade. Em toda sua obra, esse tal Roque é personagem constante.
O Roque que tem de tudo a que Pepetela se refere é o Roque Santeiro, principal mercado de Luanda, capital de Angola. Não é um mercado qualquer. O nome grandioso foi inspirado no assunto que dominava as rodas de conversa da capital na época de sua fundação, a telenovela brasileira Roque Santeiro. É um apelido que pegou, ninguém sabe exatamente por quê.
Ao atravessar suas vielas, fica claro que Pepetela tem razão. O Roque tem de tudo. É o melhor retrato de uma harmonia caótica e bem resolvida. Em seu auge, na década de 1990, era considerado o maior entreposto a céu aberto da África, com 7 mil barracas registradas na administração e outras tantas mais fora dos registros e funcionando a plenos pulmões.
Nessas vielas encontra-se de tudo o que existe e pode ser comercializado. Parafusos, sexo, cigarros, bicicletas, eletrônicos, dólares, euros, filmes, CDs e DVDs piratas, perfumes franceses, uísque escocês, ternos italianos, peças para carros do mundo inteiro, caixões feitos ali mesmo, legumes e verduras direto da horta, peixe fresco recém-pescado do Atlântico, carne de boi, de porco, de caça, de frango, material esportivo, roupas do Brasil com a última moda da novela das 9, modelitos fashion da Europa e dos Estados Unidos, livros didáticos e remédios e medicamentos doados por governos estrangeiros para serem distribuídos de graça, material de construção, apliques de cabelo e o que mais se imaginar ou precisar. É uma infinidade de produtos e serviços à disposição do freguês. À pronta entrega, de forma a fazer inveja a qualquer loja de departamentos do mundo, mesmo virtual. E, se você não encontrar o que procura aqui no Roque, pode estar certo que é porque não existe...
Numa sociedade sufocada por um Estado repressor e uma burocracia soviética, o Roque é um raro local em Angola em que o empreendedorismo é premiado e as oportunidades estão disponíveis a todos. Mercado livre é uma expressão que se aplica ao Roque como a outros poucos lugares do mundo. Irônico num país que ainda traz uma foice e um martelo em sua bandeira.
"Não vim parar aqui por opção, mas por questão de sobrevivência", explica Rasta Luis, que vende camisetas com o ícone do reggae Bob Marley enquanto sonha com sua própria carreira de músico. Marinheiro em um navio pesqueiro de bandeira coreana, um trabalho árduo e com poucos direitos a seu favor, há seis anos Luis sofreu um acidente no qual morreram dois de seus colegas de tripulação. "Mamãe não queria que eu fosse mais para o mar", recorda-se, sem chegar a lamentar por seu destino. O mercado foi o caminho natural a ser escolhido no leque de opções que ele tinha à disposição. De lá Luis tira seu sustento, ali tem seus amigos. "Aqui não tem patrão; a gente faz um dinheiro e consegue sobreviver."
Localizado no Sambizanga, hoje um dos bairros mais populosos e violentos de Luanda, o mercado espalha-se por 1 quilômetro quadrado, com vista privilegiada para o porto e a baía de Luanda. Caminhar por ele requer agilidade, capacidade de driblar sujeira, protuberâncias em várias alturas, carregadores com seus carrinhos de mão abarrotados, candongueiros enlouquecidos e compradores apressados que sabem seus caminhos e não estão muito dispostos a se desviar deles. Um mergulho mais profundo também requer aguçada sensibilidade para, sob uma superfície harmônica e frequentemente festiva, enxergar mal resolvidas tensões étnicas, políticas e regionais que permeiam a sociedade angolana, da qual o mercado é um inchado microcosmo. Ali é um lugar de coabitação, não de integração.
A primeira visão do Roque é intimidadora. Ele é imponente em sua dimensão, e sua reputação faz com que os sentidos de alerta fiquem mais sensíveis, principalmente visão e olfato. O nariz é o órgão humano que mais intensamente vivencia o mercado - nem sempre com prazer. Deixar pela primeira vez a estrada principal que o margeia, e que faz a ligação com o centro de Luanda, a meros 5 quilômetros dali, e entrar no emaranhado de vielas comerciais que ficam um pouco abaixo da pista, é como mergulhar em um novo mundo. Logo que se chega, a sensação é de caos absoluto, uma mistura frenética de gente, sons, odores, poeira e lama fluindo sem trégua entre um labirinto de barracas que parecem prestes a desabar com o menor esbarrão. Circulando pelas vielas, porém, aos poucos o lugar vai apresentando uma lógica própria, e o receio inicial dá lugar a uma sensação de acolhimento. Descobre-se logo que as barracas são agrupadas por setores em que se concentra a venda de determinados produtos. Nas extremidades ficam aquelas que oferecem comida, cada uma especializada na culinária de alguma região ou etnia angolana. No meio estão os improvisados cinemas, com sessões ininterruptas de filmes de ação ou clips de kuduro, espécie de funk angolano que é a trilha sonora dos musseques, como são chamadas as favelas de lá.
Mas o Roque é muito bem localizado geograficamente, e é por essa posição privilegiada que está com seus dias contados. A qualquer momento, ele será removido para dar lugar a um condomínio de luxo, e parte dos comerciantes será transferida para um novo mercado, que já está em construção a 50 quilômetros dali, no extremo oposto da cidade. Ninguém sabe quão pacífica será a desocupação. A julgar pelas últimas desocupações saneadoras há pouco promovidas pelo governo angolano, sangue deve ser derramado.
Para quem depende do mercado, ele é a própria vida. "O Roque tornou-se uma forma de viver, não só de vender. Mas de estar com o outro, de conviver", diz Marcelo Ciavatti, um padre salesiano argentino que comanda o Centro Dom Bosco. "O mercado abriu em Luanda a possibilidade de todos comerem a cada dia, por meio de uma troca de produtos e serviços." Na enorme sede em frente ao mar de barracas e em casas espalhadas pela área, o Dom Bosco oferece creche, escola, ensino profissionalizante e centros de saúde a boa parte dos que vivem do mercado.
O fim anunciado do Roque é sintomático de uma era. Graças a enormes reservas de petróleo, Angola vem sofrendo uma transformação radical. Isso sem falar em algumas mal contadas jazidas de diamantes na fronteira com o Congo. Apenas seis anos depois do término de uma guerra civil de três décadas, a economia angolana é uma das que se expandem em ritmo mais acelerado no mundo, a taxas de 25%, 15% ao ano. Enquanto Angola era comunista, o capitalismo selvagem do Roque foi a salvação, permitindo que os luandinos e boa parte dos angolanos fora dos círculos privilegiados com acesso ao poder comessem, se vestissem e ainda encontrassem algum entretenimento. Mas hoje o decadente Roque não combina com a nova visão de progresso que as autoridades têm do país.
"Vamos ser claros: eu sou um político", me adianta, de forma clara, Kitokolo. Uma pausa e ele continua com sua voz grave e bem articulada. "Estou aqui para defender os interesses do partido. Você pode fazer o seu trabalho livremente, desde que mostre apenas o que é bom. O que for ruim você ignora." Foi assim que as portas do mercado me foram abertas. O Roque é um lugar público, mas "público" em Angola não significa acessível a todos. "Sempre que andar por aí, você vai com alguém da administração para garantir sua segurança", me oferece Kitokolo.
Até o fim da guerra civil, fotografar na rua era proibido. Ainda hoje, andar com uma câmera na mão pode ser algo um tanto desconfortável. A preocupação com a minha segurança por parte de Kitokolo, na verdade Vitorino Sabalo Kitokolo, de 49 anos, parece justificada. Não só pelo fato de o cargo ter sido oferecido a ele sete anos antes, depois que seu antecessor fora assassinado numa emboscada em uma viela do mercado. Fazer um retrato completo do Roque é fazer também um retrato detalhado da cidade que o gerou e do país que o abriga, e o momento político é complicado. A política em Angola costuma ser bem mais violenta e brutal que seus mercados. Mas esses grandes mercados refletem, como a água de uma poça na rua, a situação turbulenta que o país atravessa em seu milagre econômico.
O Roque é temido como um antro de criminalidade. Mas, para todos com quem converso por lá, ele anda bem mais calmo e seguro que no passado. Mesmo assim, não é aconselhável a nenhum estrangeiro andar por ali sem apresentações. Meu anjo da guarda é Virgilio Batista Nzuanga, de 49 anos, mais conhecido como seu Makassamba. É presidente da associação dos comerciantes do mercado. Makassamba, como muitos, chegou a Luanda fugindo da guerra em sua província natal, o Uige, na fronteira com o Congo. Quando se instalou no Roque, o lugar ainda era um terreno vazio. "Um local em que as pessoas encontravam esperança", lembra-se, um tanto nostálgico dos bons velhos tempos.
Makassamba não é propriamente um comerciante. Seu negócio é alugar espaço para que os comerciantes autênticos guardem as mercadorias. A liderança dele vem de sua antiguidade por ali e da suave habilidade de persuadir sem confrontar. O portão do modesto complexo de alvenaria, onde sua extensa família vive em uma pequena casa num dos lados de um amplo pátio rodeado de depósitos individuais, é a grande prova da penetração do Roque na economia do país. De manhã bem cedo, caminhões encostam para carregar produtos que serão levados às províncias do interior. O mercado é também um dos principais centros de distribuição e abastecimento de Angola.
Apesar de ter encolhido nos últimos anos, o Roque é enorme. Sua administração registra 5 535 comerciantes - alguns operam sozinhos por conta própria; outros empregam quatro, cinco pessoas. Não há estimativas exatas, mas Kitokolo acredita que, diariamente, de terça a domingo (na segunda, o mercado fecha para limpeza e higienização), mais de 20 mil compradores circulem por suas barracas. "Quase toda Luanda se abastece no Roque", resume o orgulhoso administrador. A origem do Roque Santeiro é fruto de outra era, de um tempo sombrio que a maioria dos angolanos gostaria de esquecer. Em 1974, quando a Revolução dos Cravos transformou Portugal em uma democracia e, da noite para o dia, derrubou a já decadente aventura colonial lusitana, ficaram como rastro nações desestruturadas. A debandada abrupta detonou uma guerra entre grupos que lutavam pela independência. Ganhou o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), liderado pelo carismático médico e poeta Agostinho Neto. Com a União Soviética a seu lado, o presidente transformou o país numa república marxista. O Brasil foi o primeiro a reconhecer o novo governo.
A vitória do MPLA não pôs fim ao conflito civil. Pelo contrário. Em plena Guerra Fria, um novo satélite soviético na África não poderia ser bem-visto pelos Estados Unidos e seu principal aliado na região, a África do Sul, que passaram a municiar a opositora União Nacional pela Independência Total de Angola (Unita), partido liderado por Jonas Savimbi. Nos anos 80, com o recrudescimento do conflito, o interior angolano tornou-se um campo de batalha. Luanda, poupada pela guerra, transformou-se num campo de refugiados gigante. A população da cidade, que na época da independência mal passava dos
500 mil habitantes, logo pulou para quase 2 milhões - hoje entre 5 e 8 milhões de pessoas. Para sobreviver, esse mar de desesperados foi aos poucos transformando as ruas da Luanda comunista em um enorme e caótico mercado livre. O Roque Santeiro foi o grande esplendor dessa era.
Em 1986, a prefeitura cedeu um vasto terreno baldio no norte da cidade para virar um mercado informal. Antes, em 1977, o local foi usado para a execução em massa de "inimigos do povo", angolanos que discordavam do regime. O episódio ficou conhecido como o "27 de Maio". A despeito desse passado, o lugar mostrou-se perfeito para sediar o Roque. Com o porto de Luanda logo abaixo da colina, o novo mercado recebia os produtos dali desviados, e que raramente chegavam às lojas controladas pelo governo. Bem abastecido e farto, o Roque tornou-se destino obrigatório aos habitantes de Luanda.
Na companhia de meu guia, em pouco tempo eu já circulo sozinho pelo mercado, sempre sendo saudado ou convidado para uma conversa nas barracas. A desconfiança inicial com a minha cor da pele, graças à proximidade de Makassamba, logo dá lugar à curiosidade das pessoas. Testemunho alguns roubos e brigas, e também corpos de jovens baleados que amanheceram desovados no mercado. Mas o único incidente do qual fui vítima aconteceu ao fotografar a captura de um ladrão. Policiais me detiveram em um cubículo na administração, junto com o ladrão. Pela atitude agressiva deles, o meu crime parece mais grave que o do delinquente. Quase uma hora depois, sou liberado, sem muita chateação, quando Kitokolo é localizado por telefone e determina que os policiais me deixem ir. A burocracia em Angola tem seus subterfúgios de agilidade.
A guerra acabou em 2002, quando forças do governo mataram Jonas Savimbi. A despeito da riqueza emergente, o futuro de Angola é incerto. Uma coisa, porém, é clara: hoje, mesmo depois de todas as transformações, sobretudo cosméticas, que mergulharam o país na era dos shopping centers e hipermercados de rede, não existe nenhum entreposto em Angola onde se encontre tanta variedade de produtos e de gente como no Roque Santeiro. Nem tanta oportunidade e alegria nas feições desse povo sofrido.
"Não sei o que vou fazer se sair daqui. Vou encontrar dinheiro onde?", questiona uma vendedora de copos que, desde 1995, tira seu sustento do mercado. Na luta diária, mandou os quatro filhos para a escola. Proeza difícil em Angola. Ela chegou ali depois que as batalhas devastaram seu vilarejo, no interior. Seu marido foi perdido para a guerra. Do governo nunca recebeu nada. No Roque encontrou apoio e solidariedade. "As colegas se ajudam. Quando uma fica doente, as amigas vão sempre visitar, levar um pouco de comida." Nesses anos, as dificuldades foram muitas. Fome, graças ao mercado, ela nunca passou. "Vamos sentir saudade do Roque Santeiro."
Por: André Vieira
Excelente artigo! Obrigado!!
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